Seminário propõe novos caminhos para a segurança pública a partir do cuidado e da convivência
Realizado em Santos (SP), palco das violentas operações Escudo e Verão, evento promovido pelo Instituto Procomum reuniu familiares de vítimas, moradores de favelas, artistas, ativistas e pesquisadores para discutir o tema

O que é estar “seguro”? Qual é a segurança pública que queremos? Essas foram as perguntas que o seminário internacional “Salve: Cuidado, Convivência e Tecnologias para a Segurança Pública”, realizado pelo Instituto Procomum, buscou responder nos dias 14 e 15 de agosto, na Baixada Santista.
O evento reuniu mães e familiares de vítimas da violência do Estado, moradores de favelas e comunidades, artistas, ativistas, pesquisadores e representantes da Defensoria Pública, com o objetivo central de imaginar e construir novos caminhos para a segurança pública. Para a organizadora do seminário e do projeto Salve, Luiza Xavier, “as pessoas querem e tem o desejo de discutir segurança pública”, além disso, “o projeto nasce para pensar segurança pública além do que já está estabelecido e que não tem funcionado”.
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“A gente acredita que a segurança pública é a segurança de todas as pessoas. Nós somos interdependentes”, afirmou Georgia Nicolau, diretora executiva do do Procomum. “Quem está no território também tem a solução”, pontuou na abertura do seminário. Nascido da urgência de lidar com os impactos da Operação Escudo e da Operação Verão, na Baixada Santista, o evento também se propôs também a descentralizar o debate, buscando soluções e estratégias já usadas pelos territórios.
De acordo com o Instituto Procomum, o debate não termina no seminário. A próxima etapa será o Laboratório Cidadão Salve de seis semanas, em setembro e outubro, onde até 20 pessoas serão selecionadas para criar e testar soluções para os desafios da segurança pública, focando em cuidado, convivência e tecnologias.

A raiz racial da violência de Estado
Um consenso ficou estabelecido ao longo das mesas de debate: o modelo atual de segurança pública no Brasil é falho e, na verdade, é um projeto político de Estado com raízes históricas profundas. “Ele é o resultado de uma construção histórica que tem raízes no sistema de racismo estrutural, no sexismo, na lógica repressiva e punitivista do Estado”, pontuou Ane Clarissa dos Santos, assessora e pesquisadora da área de Direito no ISER (Instituto de Estudos da Religião) e advogada ligada ao movimento de mães e familiares de vítimas de violência estatal.
A fala aconteceu durante a mesa “O Paradigma Atual de Segurança: Raça, Gênero e Direito à Cidade”, moderada por Jessica Santos, editora de relacionamento da Ponte Jornalismo. Ane ainda destacou que a luta pela memória é vital, pois o esquecimento é um “instrumento de dominação”. A iniciativa do ISER, com o livro Guerreiras pelo Desencarceramento, fruto da formação de familiares de sobreviventes do cárcere, exemplifica a democratização de saberes e o protagonismo de quem vive a violência estatal.
Em sua avaliação do cenário da segurança pública, o escritor e pesquisador do Cebrap, doutor em Ciências Sociais na Unicamp, Evandro Cruz Silva, que é especialista em violência e conflitos sob perspectiva pós-colonial, criticou o paradigma dominante de segurança pública, frequentemente definido como “polícia contra ladrão”. Para ele, essa perspectiva simples e popular resulta em uma “guerra civil localizada” que criminaliza os pobres e eleva os agentes da lei a “heróis neutros”, mascarando a violência policial como “serviço”.
Os dados da edição de 2025 do Anuário Brasileiro de Segurança Pública dão conta da dimensão racial do problema: em 2024, pessoas negras representaram 82% dos mortos pela polícia e 79% das mortes violentas intencionais. A maioria dos indicadores demonstram que pessoas negras são as que mais sofrem com toda sorte de violência: policial, criminosa, doméstica e de gênero, para citar algumas.
Dentro do contexto local, Claudinho Silva, ex-Ouvidor da Polícia do Estado de São Paulo, criticou o modelo da segurança pública que, para ele, vive “uma situação de calamidade”. “O modelo atual não é o mais adequado para a segurança pública e não interessa nem à sociedade e nem aos policiais”, disse. Segundo ele, nisso reside a importância da desmilitarização da polícia, citando pesquisa de 2014 que indicou que 70% dos policiais militares desejam essa mudança. Ele também cobrou a atuação do Ministério Público, que, em sua visão, muitas vezes falha em investigar e responsabilizar os policiais.

Cuidado e conhecimento como estratégia política
Na mesa “Cuidado, Convivência e Tecnologias por um Outro Paradigma de Segurança Pública”, a colombiana Sonia Alexandra Quiñones Mina, liderança social, coordenadora do Pré-vestibular Comunitário e Popular Paulo Freire e do espaço psicossocial da infância na Asociación Casa Cultural el Chontaduro (ACCC), trouxe um olhar desde Cali, uma cidade que, segundo ela, vive “um apartheid em um sistema que as pessoas morrem de forma física e simbólica”.
No movimento de que participa, a ideia é elaborar estratégias de resistência e políticas que coloquem “o cuidado no centro da vida”. Um produto disso é o Carnaval de la Luz, evento onde a arte e a cultura são usadas para celebrar a vida e a memória dos mortos e desaparecidos pelas mãos das múltiplas violências perpetradas no país.
A proposta de “organizar a raiva e defender a alegria”, trazida por Edna Jatobá do GAJOP (Gabinete de Assessoria Jurídica às Organizações Populares), resumiu o sentimento de muitos participantes. Ela compartilhou a experiência do Fórum Popular de Segurança Pública de Pernambuco, que, diante da recusa do Estado em dialogar, organizou conferências populares em casas, terreiros e até debaixo de viadutos, mostrando que é possível discutir segurança de outras formas quando se está “com o povo que está sofrendo a insegurança pública na pele”. O trabalho do Fórum, gerando dados e propostas, já resultou em significativa redução da letalidade policial em Pernambuco.
Apesar dos desafios, Lidiane Figueira, coordenadora de Incidência Política da organização da Redes da Maré, destacou que os verdadeiros especialistas estão nos territórios, constituindo estratégias e a ideia de direito à segurança. Ela ressaltou que a disputa por políticas públicas é também uma disputa pelo reconhecimento dos saberes locais e da capacidade de auto-organização popular.
A Redes da Maré, por exemplo, criou um plantão de operação policial para atender violações e, a partir dos relatos, passou a produzir dados que contrapõem a narrativa da “operação de sucesso”. “As necessidades foram nascendo a partir de nossa escuta nesses momentos”.

A informação como arma
O articulador político da Amparar (Associação de amigos e familiares de presos/as), Fábio Pereira, destacou o trabalho da Amparar como “organização que tem formulado perspectivas de vida num cenário de morte”. “Guardar a vida na eminência da morte. É isso que essas mulheres estão fazendo há quase 30 anos”, explicou durante a mesa “Cuidado e Convivência: Caminhos Comunitários para a Segurança”. Para ele, existe uma dificuldade em elaborar propostas que não sejam apenas reativas. “A gente responde a todo momento aquilo que que chega batendo em nós. Está na hora da gente pensar em outras reações”, afirma ele.
Para Andrelina Amélia Ferreira, conhecida como Andreia MF, coordenadora do movimento Mães do Cárcere, é o momento de “levar os direitos humanos para a favela”. “Chegou a hora da gente treinar o nosso povo, de que forma eles devem agir. Nessa questão não dá para falar só aqui de nós para nós o tempo inteiro”, pontua. A ativista afirma que já tem pensado um projeto nesse sentido. “Não tenho orçamento, não tenho fundos, não tenho apoio político, mas eu vou levar para dentro da favela os direitos humanos para que o jovem adulto saiba dos seus direitos e comece a se armar de informação.”
Outra forma de cuidado é envolver as crianças na discussão sobre segurança pública e direitos humanos. Para Helena Ferreira, redutora de danos e membro do Grupo de Extensão e Pesquisa Div3rso da Unifesp, é preciso falar sobre segurança pública dentro de casa. “Não dá para o pai e a mãe sair com uma criança na rua e falar que a pessoa que está em situação de rua é o homem do saco. A criança já cresce pensando nisso. E muitos deles se agarram nessas ideias”.

Vozes da dor e da resistência
O evento foi marcado por relatos emocionantes de mães e familiares de vítimas da violência estatal, que se colocaram como a “linha de frente” de suas famílias na busca por justiça e paz. Juliana Ramos, irmã de Jefferson Ramos Miranda, morto na Operação Escudo, compartilhou a dor de ter sua “mesa não mais completa” e disse por que a segurança é negada nos morros: “Porque a gente não tem direitos no morro”.
Margarete Teles, tia de uma vítima da chacina de outubro de 2012 na Vila Matias, e Maria Sônia Lins, mãe de Wagner Lins dos Santos, vítima dos Crimes de Maio, trouxeram a perspectiva das Mães de Maio. Elas enfatizaram a importância do movimento na luta por acolhimento e reparação psicossocial, e como as operações como a Escudo e Verão são a continuação do modelo de Crimes de Maio.
Cleimara Prado, Regina Pereira, Rosivânia dos Santos Santana e Nair Torres Ferreira, mães de vítimas da Operação Escudo/Verão, reforçaram a busca incessante por justiça contra a impunidade e a rotulação de seus filhos como “bandidos”. Gilmara Dinis da Silva, mãe de Cauê Henrique, morto aos 17 anos na Operação Verão, e Ilsa, mãe de Thiago Roberto, morto em 2006, destacaram a dor da perda e a necessidade de lutar por todos os filhos e netos, seus e de outras mães.
A coordenadora do movimento Mães de Maio, Débora Silva, destacou a luta do coletivo na academia, onde muitas mulheres se tornaram pesquisadoras do CAAF/Unifesp (Centro de Arqueologia e Antropologia Forense). “A produção do conhecimento nasce dentro do nosso útero. Nós criamos, nós parimos e nós não vamos aceitar o estado matar nossos filhos”. Outra frente de luta do movimento é a aprovação do PL 2999/2022 que cria um projeto de acolhimento e de reparação psicossocial e econômica para sobreviventes e famíliares de vítimas da violência de Estado.
Mãe de Denis Henrique, morto no Massacre de Paraisópolis e “mãe-pesquisadora” no CAAF/Unifesp, Maria Cristina Quirino, apresentou material que pode ser utilizado como prática de autodefesa e cuidado durante violência policial. O documento é o “Manual de sobrevivência na guerra dos de cima contra os de baixo: a nossa segurança pública feita nóis por nóis”, confeccionada pelo Luta Popular, o Movimento de Familiares das Vítimas do Massacre em Paraisópolis, o Comitê Brasilândia Nossas Vidas Importam e a Apeoesp (Subsede Oeste-Lapa).

Tecnologias cidadãs e disputa de narrativas
A ausência de dados oficiais sobre o impacto das operações policiais em outros direitos, como mobilidade, educação e economia local, foi apontada como falta de transparência e de um olhar multidisciplinar para as consequências da violência policial. “A gente não sabe quantos tiroteios acontecem na Baixada Santista ou quanto dinheiro os pequenos comércios da Baixada Santista perdem quando tem fechamento de comércio por causa de operação policial”, exemplificou Evandro Cruz.
“É a partir da produção de dados que a gente tem talvez uma uma trilha aberta para politizar o debate sobre segurança pública da maneira como ele precisa ser politizado”, afirma Mariana Araújo, diretora de comunicação e inovação do Instituto Fogo Cruzado na mesa “Tecnologias Cidadãs e o Futuro da Segurança Pública”. A produção de dados pela sociedade civil, também conhecida como GCD (Geração Cidadã de Dados), foi apontada como uma ferramenta de poder e “tecnopolítica”. “A proposta do Fogo Cruzado, por exemplo, é uma abordagem que não tem solucionismo tecnológico no centro. É pensar em tecnologia com a centralidade das comunidades, das pessoas, dos cidadãos”, explica Mariana.
Para ela, a GDC “apreende um conhecimento vivenciado nos territórios”. A partir disso, o Fogo Cruzado mapeia tiroteios e produz mais de 50 indicadores, incluindo a interrupção de transporte público por ações policiais e crianças baleadas.
Na mesma lógica de dados produzidos a partir da sociedade, Marília Fabbro de Moraes, do projeto Mirante do Geni (Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos) da UFF (Universidade Federal Fluminense), apresentou um mapeamento de chacinas policiais, iniciado a partir da Operação Escudo. O projeto visa investigar as ações policiais e desconstruir as narrativas oficiais que frequentemente plantam evidências e justificam as mortes. “[Nosso trabalho] é mostrar como são construídas as versões policiais, ou seja, esses dados têm um viés pericial, que é feito para concordar com a versão do relato policial”.
Em parceria com o coletivo Olhar Marginal, a plataforma também busca desestigmatizar os territórios periféricos, mostrando sua vida, cultura e arte. “O ‘Olhares do Território’ que são fotografias feitas por moradores do território da Baixada, para desestigmatizar esses territórios deflagrados, territórios de violência e dizer que nesses territórios tem vida”.
A mesa também abordou o uso de novas tecnologias pelo Estado. O assistente de pesquisa do projeto Panóptico do CeSeC (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania), Gabriel Leite, criticou o uso de reconhecimento facial, apontando para o número de “falsos positivos” e o constrangimento legal que causam, especialmente em eventos culturais. Ele destacou que a região Sudeste concentra a maior parte desses projetos, e que essas tecnologias não são neutras, servindo muitas vezes como ferramenta de controle e “colonização do território”, ao invés de solucionar problemas estruturais como falta de água, educação ou saúde. De acordo com Gabriel, atualmente existem 421 projetos utilizando tecnologia de reconhecimento facial no Brasil e cerca de 87 milhões de cidadãos que estão sob potencial vigilância.
Contudo, há movimentos de resistência a essas tecnologias que têm vieses racistas e transfóbicos. Ele citou projetos como o Tire seu rosto da minha mira e a coleção de jóias vestíveis Face502 como formas de aplicar o conceito de direito de resistência enquanto manifestação de desobediência civil. “A gente vê que a população está se organizando no sentido de reconhecer que esses projetos de vigilância não estão solucionando nada, porque não existem estudos que comprovem que o aumento do reconhecimento facial tenha diminuído a criminalidade. Muito pelo contrário, ele está gerando criminalidade pelo lado oposto.”
Um exemplo disso aconteceu no bairro Quarentenário, em São Vicente. De acordo com Madu Barbosa, membro do Olhar Marginal, quando a prefeitura quis instalar totens de reconhecimento facial, os moradores da região passaram a derrubar os mesmos até a administração municipal desistir de manter a tecnologia no local.
A editora de relacionamento da Ponte viajou a Santos (SP) a convite do Instituto Procomum.